Desvendando os Impactos do Trabalho Remoto através da Análise de Redes Organizacionais
A era do rendimento
Somos uma espécie essencialmente social, produto emergente de uma complexa rede de relações com “outros” com os quais não estamos parentalmente vinculados - como sim acontece com os denominados insectos sociais, por exemplo - e com quem cooperamos amplamente nas mais diversas empreitadas.
Durante 95% da nossa existência como Homo Sapiens, não existiu uma clara distinção - nem mesmo o termo - entre o trabalho e outras atividades da vida, como rituais, aprendizado e lazer. inegavelmente, a vida era mais integrada e isso mudou drasticamente com a Revolução Agrícola e solidificou-se com a Revolução Industrial, a partir da qual nos transformamos em workaholics.
No livro "A Sociedade do Cansaço", o filósofo contemporâneo Byung-Chul Hanafirma que vivemos numa era caracterizada pela incessante busca do rendimento (Han, 2012). Mesmo quando parece que dispomos de mais tempo livre devido à tecnologia (especialmente os smartphones), estamos constantemente gerando dados voltados para maximizar a produção e o uso do tempo de suposto "lazer", que mais nos cansa do que revitaliza.
Na "Era do Rendimento", a busca incessante por eficiência e sucesso torna-se uma pressão internalizada, levando à exploração constante de si mesmo. Han critica o papel da tecnologia e das redes sociais, que mantêm as pessoas sempre disponíveis e conectadas, resultando em fadiga e ansiedade.
Por outro lado, nossa habilidade de operar em amplas redes nos dá uma grande vantagem adaptativa para fazer frente às mudanças repentinas de contexto, muitas delas criadas por nós mesmos. Podemos denominar isso como evolução no sentido de transformação, não necessariamente de progresso ou avanços em áreas abertas ao debate, como o aumento ou detrimento da qualidade de vida ao longo da história.
As transformações adaptativas mais notáveis decorreram das revoluções tecnológicas, desde a revolução neolítica até a revolução industrial. Todas elas tiveram um impacto definitivo na maneira como nos (re)organizamos em rede.
Hoje, tudo indica que estamos no meio da quarta revolução industrial, que engloba um amplo sistema de tecnologias avançadas como inteligência artificial, robótica, internet das coisas e computação em nuvem, as quais estão alterando as formas de colaboração para a produção.
O catalisador da Pandemia.
O processo de transformação que vivenciamos foi acelerado drasticamente pela recente Pandemia do Coronavírus. Ela foi tão traumática que parecemos tentar apagá-la de nossa memória coletiva (um fenômeno comum com traumas e transformações do tipo). Durante esse intenso período, que segundo a OMS foi de janeiro de 2020 a maio de 2023, ocorreu o maior experimento social de trabalho remoto já conduzido.
Embora a tendência do home office não fosse nova e já estivesse sendo discutida e até implementada em certas áreas, a pandemia forçou o esvaziamento abrupto dos espaços de trabalho corporativos e transferiu a responsabilidade de adaptação para os colaboradores, que precisaram rapidamente reconfigurar seus lares para inserir neles a esfera do trabalho.
Ainda estamos nos adaptando ao home office, navegando entre o aconchego, a privacidade e o senso de controle que o espaço doméstico nos oferece, ao mesmo tempo em que enfrentamos a ansiedade de perder os espaços valiosos de interação informal (lembram do cafezinho?) e as cruciais informações contextuais e paratextuais que o ambiente presencial proporciona, além da empatia pelo outro facilitada pela corporalidade. Um "outro" que, como nós, está se acostumando com a descorporalização, que lhe possibilita o controle de filtrar sua espontaneidade, como se fosse uma performance, curar, ligar/desligar os sons, imagens e palavras proferidas em reuniões virtuais. A fibra humana que nos é inherente, parece estar começando a vibrar em outra sintonia.
Essas observações estão em consonância com pesquisas como a pesquisa Global de Espaços de Trabalho da IWG, na qual 22% dos entrevistados apontam a dificuldade de desconexão do trabalho como a principal queixa do home office, seguida por solidão (19%), problemas de comunicação (17%), distrações em casa (10%) e discrepâncias nos horários entre equipes (8%).
O impacto do trabalho remoto nas redes organizacionais.
No nível organizacional, a dispersão e o isolamento físico das redes de trabalho estão evidenciando claramente seu impacto no enfraquecimento das culturas organizacionais, produtividade e bem-estar dos colaboradores.
Com mais de 15 anos de experiência em Análise de Redes Organizacionais (ONA), tenho examinado como as redes se adaptaram às recentes mudanças antes, durante e depois da pandemia.
A ONA nunca foi tão relevante como agora, pois, além de auxiliar na compreensão e gestão de redes organizacionais, ajuda a esclarecer a dificuldade de mensurar o impacto do trabalho remoto prolongado em aspectos como cooperação, motivação e inovação dos profissionais.
Partimos do pressuposto de que, hoje mais do que nunca, são as redes informais de cooperação que determinam como o trabalho é executado no cotidiano, independentemente da estrutura formal da organização. Ambas, formal e informal, coexistem como faces da mesma moeda (García, HBR, 2011) e devem se retroalimentar, criando sinergias. No entanto, a realidade mostra que isso ocorre raramente, particularmente em um contexto de relacionamentos virtuais.
De todas as organizações mapeadas durante 2019 e 2023 em segmentos e indústrias que vão desde a geração de energias, redes de estudos diagnósticos e estudos de advocacia, observa-se sempre uma diminuição na densidade dos relacionamentos chamados de alto rendimento: aqueles que são percebidos como agregadores valor na rede, seja pela relevância das informações trocadas, a capacidade de motivar-se mutuamente ou de trocar novas ideias para fazer melhor o trabalho.
Nota: para mais informações sobre o modelo de diagnóstico utilizado, ver o artigo originalmente publicado na Harvard Business Review AQUI,
De todas as organizações mapeadas por mim e a minha equipe entre 2019 e 2023, em setores que variam de geração de energia até o jurídico, observamos uma redução generalizada entre 5% e 15% na densidade de relacionamentos de alto rendimento. Por outro lado, houve um aumento na centralização da rede em colaboradores específicos que passaram a exercer maior influência do que antes.
Redes menos densas (interconectadas) e mais centralizadas (dependentes de poucos nós da rede) tendem naturalmente a ser menos resilientes, adaptáveis e eficientes. Pelo contrário, redes densas, com vários caminhos e pontes para conectar pessoas diversas e com as influências descentralizadas em vários, permite que a rede não se quebre - frente a saída de funcionários, por exemplo - e que se adapte e inove com maior facilidade.
Outro dado relevante que emerge da comparação dos casos recentes de mapeamento de redes organizacionais no Brasil é que as relações de "capital social de vinculação", entre colaboradores que já possuíam afinidade prévia às relações virtuais, aumentaram significativamente (entre 5% e 15%), enquanto os laços de "capital social puente", que conectam atores diversos, diminuíram em proporção equivalente, conferindo maior poder de rede àqueles que já ocupavam posições estratégicas de união entre diversos elementos (os "construtores de pontes").
Redes com poucas pessoas “pontes” conectando áreas diversas (os “outros” dentro da organização) tendem a ver reduzida a sua capacidade de comunicação capilar e integração entre áreas, regiões e comunidades internas, passando a depender das suas lideranças locais (os “hubs” de cada cluster). Em termos de capacidade adaptativa e de inovação, um maior capital ponte ("bridging social capital") é mais estratégico do que um maior capital de vinculação local ("bonding social capital").
Os modelos híbridos e a melhora da cooperação.
Assim como o ápice da pandemia presenciou o fenômeno conhecido como a "Grande Resignação", marcada por um alto número de demissões voluntárias, o início de 2023 foi marcado por uma onda de demissões em massa, conhecidas como "layoffs", principalmente nos setores de tecnologia, startups e saúde. Esse movimento contraditório tem diversas interpretações, mas o que importa aqui é que a ideia de que o home office é mais produtivo não é mais tão aceita, e o mercado está buscando modelos híbridos que equilibrem produtividade, saúde e senso de pertencimento.
Por outro lado, as pesquisas recentes sobre recrutamento indicam que, no Brasil, a maioria dos profissionais está relutante em retornar integralmente ao escritório, sendo que 76% consideram o modelo híbrido ideal (Robert Half, 2023).
Como diria o filósofo grego Aristóteles "a virtude está no caminho do meio". Os modelos híbridos podem variar e ser criativos, desde empresas que adotam formatos híbridos fixos até aquelas que permitem aos colaboradores escolherem a modalidade que eles preferirem, possibilitando uma experimentação contínua e colaborativa do melhor modelo a ser seguido. Uma certeza é que, como já me disseram executivos recentemente: "a conta pelo prolongamento do trabalho remoto está chegando”. De fato está chegando e a moeda com a qual terão que pagar - caso não passem a pensar e gerir as suas organizações baseados em modelo de redes cooperativas - é intangível e está em alta: o Capital Social corporativo. Perder capital social corporativo implica em perder competitividade, senso de pertencimento e habilidades de inovação e adaptação em rede. O momento é agora!
Artigo originalmente publicado no LinkedIn AQUI.
